terça-feira, 14 de julho de 2009

ÁFRICA

Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls-Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de prostituição.

Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstrato
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfetante bênção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de "strip tease" e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exata só para negro
um gramofone de magaíza
um filme de heróis de carabina a vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das suas balas e dos seus gases lacrimogêneos
civiliza o mau casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço
em rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas* da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
a confortável cadeira elétrica

a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia

criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Klu-Klux-Klan, Cato Mannor e Sharpeville**

e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre os ninhos mornos de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a cruficifada nudez

da sua Joana D'Arc e agora vêm
arar os meus campos com tratores "made in germany"
mas já não ouvem a sutil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extinguiu-se a eloqüente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo

e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinita côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cowboy do nimbo dos átomos

desfolhados no duplo rodeio aéreo no Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero
perdôo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o humus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
eretos no vento nervoso da noite africana.


* Amuletos

** Cato Mannor e Sharpeville: Nomes de lugares onde ocorreram repressões policiais sangrentas na Africa do Sul contra trabalhadores africanos.


José Craveirinha

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