Por Manoel Fernandes Neto e Cris Fernandes
Ele recebe
manifestações de apoio de diversas partes do mundo. Também desperta a fúria de comunidades contrárias à sua atuação, que lhe enviam por e-mail vírus e ofensas pessoais. Já foi censurado e causou indignação ao classificar, junto com o
escritor português José Saramago, o primeiro ministro de Israel de nazista. Mas isso não tira do sério o cartunista Carlos Latuff, pelo contrário. "Fico feliz com essa ira profana. Se a minha arte é a dor de cabeça deles, esse é um bom sinal."
E a arte de Latuff não deixa dúvidas. É indignada e não indicada para estômagos sensíveis e grupos não conformados com a livre expressão. Pode estar nas trincheiras do movimento Chiapas, contra o império americano, nas passeatas dos movimentos antiglobalização da Europa, ou junto à resistência nos territórios ocupados da Cisjordânia, que visitou e reafirmou suas armas pela luta de libertação. "Meu trabalho de denúncia dos incontáveis crimes de guerra perpetrados por Israel e sua máquina de guerra "made in USA" contra toda uma população esquecida pelos países árabes e o resto do mundo."
O traço, as cores e Internet fazem parte do arsenal desse brasileiro de 34 anos que dissemina sua arte engajada dentro de conceitos copyleft por diversos sites e publicações progressistas no planeta, a maioria em inglês, atingindo uma audiência nos cantos mais longínquos do planeta. "Liberei os direitos de reprodução pois meu interesse nesse caso não são os "royalties" e sim a propagação de idéias".
Nessa entrevista exclusiva a
Novae, Lattuf não poupa críticas a movimentos sociais pela paz, mídia de massa e seus cartunistas e reafirma a ausência de utopia e otimismo em relação ao ser humano. Se autodefine com simplicidade. "Só procuro fazer a coisa certa".
Novae - Você é um dos mais incisivos cartunistas da atualidade com o trabalho voltado para a política internacional, principalmente à crise no Oriente Médio e a dominação americana. Como foi sua trajetória artística até essa posição?
Latuff - Em 1990, depois de um ano trabalhando como ilustrador numa pequena agência de propaganda no centro do Rio, fui bater em algumas portas na intenção de continuar minha atividade artística. Mas, ao contrário de minhas expectativas as portas estavam, na sua maioria, fechadas. As poucas que se abriram foram de pequenas publicações (house organs).
Foi então que a grande porta se abriu: a do movimento sindical. Entrei e não saí desde então. No início não tinha qualquer comprometimento político. Fazia cartuns porque era pago por isso. O conceito de direita e esquerda me parecia claro, mas não fundamental. Tanto que cheguei mesmo a ilustrar jornais da primeira campanha a presidente de FHC.
Em 1997, depois de assistir a um documentário sobre o levante Zapatista em Chiapas, decidi iniciar um apoio artístico voluntário aquela causa. Nascia aí o artista militante que sou até hoje. Em 1999, graças a meus cartuns em favor dos palestinos, fui convidado pela ONG Palestinian Center for Peace and Democracy a um "tour" pelos territórios ocupados da Cisjordânia. O que vi naquele lugar me convenceu definitivamente da necessidade de continuar meu trabalho de denúncia dos incontáveis crimes de guerra perpetrados por Israel e sua máquina de guerra "made in USA" contra toda uma população esquecida pelos países árabes e o resto do mundo.
Novae - Qual o feed back que você recebe do seu trabalho?
Latuff - A maioria é boa. O carinho e a força vêm dos quatro cantos do planeta, seja de ativistas sul-coreanos até cidadãos comuns na Itália. Mas há também aqueles que me esculhambam, enviando vírus, ofensas e até ameaças. Essas geralmente de quem apóia a política criminosa de Israel e dos EUA. Ainda assim fico feliz com essa ira profana. Se a minha arte é a dor de cabeça deles, esse é um bom sinal.
Novae - Na maioria dos seus cartoons sua indignação é explicita, tornando seu traço um protesto veemente contra o massacre das minorias e oprimidos. Você recebe algum tipo de censura ou critica por comunidades e/ou pessoas não tratadas simpaticamente em sua obra?
Latuff - Censura faz parte do jogo. Essa vem de todo lugar, da esquerda, da direita, de cima, de baixo. Mas geralmente tacam pedras em árvores que dão frutos, não é isso? A censura é a prova cabal da capacidade do meu trabalho de incomodar, de produzir uma coceira na consciência que não há como aliviar.
Atualmente é o lobby sionista que ataca minha solidariedade ao povo palestino, que eles não reconhecem, rejeitam, desrespeitam e matam. E esse lobby por vezes traz um disfarce progressista, como é o caso da ONG suiça Aktion Kinder des Holocaust (Ação Crianças do Holocausto) que se pretende combater a intolerância contra os judeus, mas que promove a intolerância contra os palestinos quando acionou na polícia o site Independent Media Center por ter publicado minha série de cartuns "We are all Palestinians", onde comparo o sofrimento de vários povos na
História com a opressão na Palestina.
A despeito da ação dos reacionários, sigo desenhando, fotografando, escrevendo e pisando em calos.
Novae - Como você se autodefine na luta pela liberdade dos povos?
Latuff - Um artista que tenta "fazer a coisa certa."
Novae - Qual o significado da "PAZ" para você? Como você vê o trabalho dos grandes veículos de comunicação perante a cultura de PAZ?
Latuff - Ah sim, a paz. Aquela promovida pelo Viva Rio, com artistas globais vestidinhos de branco na TV ou "passeateando" na orla de Ipanema? Ou aquela do bispo Macedo e do missionário R.R. Soares? A paz que o sistema quer é "descanse em paz."
Novae - Pela sua resposta podemos entender que você generaliza que todos os movimentos pela Paz da sociedade civil fazem um ativismo somente para aparecer na televisão, sem engajamento profundo; a pergunta é a seguinte: vc não tem sequer uma ponta de otimismo em relação a um posicionamento pacífico na busca da Paz, seja a urbana, seja a dos países e a dos povos? Latuff é um pessimista?
Latuff - Te respondo com outras perguntas: houve paz em algum período da história humana? Em que momento da humanidade o homem deixou de matar outro por interesses pessoais ou corporativos? O que é mais lucrativo, a paz ou a guerra?Tem quem acredite num novo homem fruto da tão esperada revolução. Mas amigo, a questão é que, o processo de conscientização das pessoas é mais lento que o processo de destruição do meio ambiente. Se algum dia o ser humano estiver prontinho para a revolução, vai beber e respirar o que?Talvez, eu repito, talvez, a única chance de sobrevivência seja a derrubada da hegemonia masculina na terra. Parafraseando o psicoterapeuta José Angelo Gaiarsa em seu livro "O que é pênis": "Ou o homem aprende sua posição de satélite e servidor da mulher (e da criança, e da espécie), ou receio que seu último ato de exibição seja a destruição da raça e do planeta."
Novae - Gostaria de fazer um gancho com os cartunistas que atuam na mídia de massa no Brasil, nos grandes jornais e TV, que ignoram o noticiário internacional, principalmente o massacre dos povos. Como o vc analisa este vazio? Como vc vê essa "alienação" de outros cartunistas a estes assuntos? Você acha que os meios de comunicação de massa temem publicar charges como as de Latuff pois isso contraria interesses?
Latuff - É preciso entender a que servem os jornais na teoria e na prática. Se o editor-chefe de um jornal de grande circulação for entrevistado, ele certamente vai falar dos princípios básicos do jornalismo, imparcialidade, credibilidade, seriedade, blá, blá, blá. Mas, e a prática, como fica? Quando a capa da revista Veja se refere ao MST como "tática da baderna", a Globo edita o debate entre Lula e Collor, comentaristas na TV e colunistas nos jornais defendem as privatizações, percebe-se uma intenção doutrinária e não informativa por parte da imprensa.Se bem me lembro, Chico Caruso publicou uma charge durante o primeiro turno das eleições presidenciais, quando Roseana Sarney era a queridinha da mídia, em que ela e José Serra estavam numa gangorra. O rosto de Serra tinha sido caricaturado como sempre, com traços grotescos. Mas Roseana não. Chico a poupou. Ao invés de desenhar seu rosto de maneira caricata, o cartunista preferiu simplesmente colar uma foto sorridente dela. Será que o experiente Chico Caruso desaprendeu subitamente a caricaturar rostos femininos? Será que era preciso "pegar leve" com a candidata, já que naquele momento específico, era tida como a preferida da direita?"Manda quem pode, obedece quem tem juízo." Para os cartunistas que trabalham no "mainstream" essa é uma lógica preciosa.
Novae - Seu trabalho é todo distribuído pela rede dentro do conceito copyleft. Na sua opinião onde reside a importância desta forma de distribuição?
Latuff - Sendo um trabalho essencialmente político-social, meu interesse é que a mensagem contida nas imagens chegue a um sem número de seres humanos. Portanto, qualquer restrição a circulação livre destas gravuras seria contra-producente. Por isso liberei os direitos de reprodução pois meu interesse nesse caso não são os "royalties" e sim a propagação de idéias.
Novae - Qual a relação que você vê entre ativismo e arte?
Latuff - Arte não tem de ser necessariamente engajada, mas o artista consciente percebe que não é um indivíduo solto pelo mundo, livre de responsabilidade social. E se o que de melhor ele tem a oferecer é a sua arte, então ele pode tanto produzir arte pela arte como arte para a mudança.
Novae - Qual a sua maior utopia?Latuff - Não tenho nenhuma. Faço o que tenho de fazer, mas acredito que a maior glória desse sistema patriarcal capitalista será levar a todos nós pro saco!Novae - O que significa na sua opinião a Internet?
Latuff - Uma Ferrari. Pode-se percorrer grandes distâncias num curto espaço de tempo nela, ou somente usá-la como varal pra pendurar cuecas molhadas. A Internet é o que você faz dela. Melhor aproveitar enquanto ela é ainda livre...
Latuff na rede: